PORTUGAL NO ESPETO

ESTRAGO DA NAÇÃO

Sunday, June 01, 2003

GRANDE REPORTAGEM, Junho de 2003

Nota: Este texto foi publicado antes do início do Verão de 2003, o mais «incendiário» do país... até agora!

ADEUS FLORESTA

Durante o Verão, a floresta portuguesa transforma-se numa escola de geografia. De repente, pelos noticiários da televisão, rádios e jornais, o país começa a soletrar e a conseguir localizar aldeias recônditas e perdidas pelas serranias de um interior vazio de pessoas e que começa a ficar deserto de vegetação. Nos últimos anos quem não sabia da existência de lugares como Vide, Santo André das Tojeiras, Carvalhal, Sarzedas, Cardigos, Álvares, Alvoco da Serra e muitos outros com nomes mais ou menos estranhos e esotéricos, ficou a conhecê-las pelas imagens da televisão. Em chamas!

Os fogos na nossa floresta são um dos fenómenos nacionais que mais se podem adjectivar. Nenhum deles é belo, nem exuberante, nem tão-pouco magnífico. Portugal parece-se com uma pira cheia de álcool, que incandesce à menor pontada de tempo seco. Na última década, uma média anual de 25 mil chamadas chegam às diversas corporações de bombeiros para acudir aos fogos. Um em cada quatro transforma-se num incêndio de alguma proporção. Algumas dezenas dizimam mais de 100 hectares; uns poucos por ano ultrapassam mais de um milhar de hectares.

O saldo é tristemente negro: entre 1980 e o ano passado, a média anual da área ardida ronda os 93 mil hectares, mas a evolução tem sido tenebrosa. No quinquénio 1980-84 foram destruídos pelas chamas cerca de 55 mil hectares por ano de florestas e matos, enquanto no último quinquénio ultrapassou os 120 mil por ano, cerca de metade são povoamentos florestais e outro tanto são matos. Ou seja, mais que duplicou em menos de duas décadas! A sequência de anos catastróficos também tem aumentado. Na década de 80 observaram-se apenas dois anos com área ardida superior a 100 mil hectares, na década de 90 já foram quatro anos e no novo milénio todos os anos superaram essa desoladora fasquia.

A culpa desta situação, repetem os políticos – que têm sempre o tique de ir a correr para os centros de operações aquando dos maiores incêndios –, é do tempo quente e seco e também do vento que “teimam” em aparecer pelas bandas de Junho prolongando-se até Setembro. Em alguns anos, contudo, os grandes fogos surgem mais cedo e recentemente nem os Invernos menos chuvosos são clementes.

Por exemplo, a uma semana do Natal de 2001, um incêndio em Góis destruiu 1700 hectares de floresta, tendo sido o quarto maior fogo daquele ano. “Sem dúvida que o clima é determinante para a ocorrência de fogos, mas uma boa gestão é aquela que contraria essa tendência natural. Ora, o que acontece em Portugal é que registamos áreas ardidas que serão semelhantes aquelas que ocorreriam nos ecossistemas mediterrânicos naturais, sendo assim um sintoma de ausência de gestão”, salienta Francisco Rego, professor do Instituto Superior de Agronomia (ISA) e antigo presidente da Comissão Nacional Especializada em Fogos Florestais (CNEFF).

Um estudo concluído em 2001 pelo Departamento de Engenharia Florestal do ISA apurou que cerca de um terço do território nacional apresenta uma muito elevada vulnerabilidade aos incêndios florestais, que em termos práticos significa que a probabilidade da ocorrência de um incêndio em qualquer parcela florestal é superior a 40% nos próximos 30 anos. Em duas dezenas de municípios essa probabilidade chega a ser superior a 75%. Parece muito tempo, mas essa é a idade mínima para que um pinheiro atinja um crescimento economicamente rentável.

Perante isso, estatisticamente em cada 10 hectares de pinhal plantados, na melhor das hipóteses, conseguir-se-á, em média, obter produção em apenas dois. “Este trabalho baseou-se no cruzamento da cartografia dos fogos ocorridos em Portugal entre 1990 e 2000, com dados topográficos, meteorológicos, ocupação do solo e concentração populacional, que são factores determinísticos para a ocorrência futura dos fogos, caso não se verifiquem modificações futuras na gestão e vigilância”, salienta José Miguel Cardoso Pereira, professor do ISA e coordenador deste estudo, que será a base do mapa de risco que aguarda, desde há dois anos, aprovação pelo Ministério da Agricultura.

A região a norte do Tejo é aquela que regista uma maior vulnerabilidade ao fogo: cerca de dois terços da área estão englobados nas classes de alto e muito alto risco – exactamente na região de maior predominância da floresta de pinheiro bravo, embora na zona do Dão, a norte de Viseu, já dominem os matagais, em muitos casos devido a recorrentes incêndios.

Esta é, aliás, uma confirmação de que a meteorologia não é o factor fundamental para a ocorrência dos fogos destrutivos. O Alentejo é muito mais quente e seco, mas a sua estrutura florestal – dominada por montados – é menos propícia à propagação de incêndios. Por outro lado, o factor humano, para o melhor e o pior também representam um papel crucial. Regra geral, o distrito do Porto – com uma elevada densidade e dispersão populacional – tem mais de cinco mil incêndios por ano, mas a esmagadora maioria acabam por ser apenas simples fogachos, ardendo, em média por ano, pouco mais de dois mil hectares de povoamentos florestais e cerca de três mil hectares de matos.

No lado oposto, os distritos do interior, os incêndios são avassaladores. Por exemplo, no ano passado, mais de metade da área ardida localizava-se apenas nos distritos de Castelo Branco, Vila Real, Viseu e Guarda. Este é, aliás, um efeito preocupante do desequilíbrio do país: as zonas mais populosas têm mais incêndios, mas menos destrutivos; o interior desertificado e sem meios de vigilância e combate não consegue evitar a destruição maciça das suas áreas florestais quando os fogos as atingem. “Desaparecem as pessoas, aparecem os incêndios”, sintetiza Cardoso Pereira.

O somatório da destruição do fogo na floresta portuguesa é aterrador. Segundo um outro estudo coordenado por Cardoso Pereira apurou que, durante os anos 90, os fogos florestais dizimaram uma área equivalente a 20 por cento do território da região a norte do rio Tejo, ou seja, mais de um milhão de hectares. “Em muitas zonas, os povoamentos florestais nem tiveram tempo de recuperar; os matos que nasceram após o fogo dos anos anteriores ou as novas plantações foram calcinados por novos incêndios”, salienta aquele especialista. Por exemplo, nos concelhos da Pampilhosa da Serra e Guarda, a soma das áreas dizimadas pelos sucessivos incêndios na última década ultrapassa a área do município.

Se à escala nacional, os incêndios florestais são a pior catástrofe natural – com a grande “ajuda” humana –, a situação portuguesa é também preocupante a nível mundial. No ano passado, o Programa das Nações Unidas para o Ambiente – no âmbito do livro “Global Environmental Outlook 3 – calculou a área de floresta pura destruída em 46 países durante os anos 90 chegando a um impressionante valor de 21 milhões de hectares. De entre os países mediterrânicos, Portugal apenas era ultrapassado pela Espanha. Mas olhar os dados apenas por este prisma é enganador. Com base nos mesmos dados daquela instituição das Nações Unidas, se se fizer as contas para a percentagem de floresta pura afectada pelos incêndios, a situação nacional é francamente aflitiva.

Enquanto, Portugal viu desaparecer, durante a década passada, 16% da sua floresta, a Grécia e Espanha perderam um pouco menos de 6% e a Itália e França ficaram-se pelos 2%. Estes valores nacionais são dramáticos à escala da floresta europeia e mundial. Enquanto a Europa está a registar um acréscimo da área florestal da ordem dos 0,1% ao ano, Portugal regrediu a um ritmo de 1,5%. Essa situação “rivaliza” com regiões mundiais que estão a sofrer ritmos galopantes de deflorestação, como a África Ocidental e a Amazónia, onde os níveis de destruição são de 1,53% e 1,2% por ano, respectivamente, de acordo com dados das Nações Unidas. Ou seja, se a floresta nacional fosse do tamanho da Amazónia, o Mundo estaria apavorado com os incêndios de Portugal.

Contudo, muito ao estilo lusitano dos paninhos quentes, as autoridades nacionais relativizam sempre essa autêntica devastação e até viram o bico ao prego, defendendo mesmo que a área florestal está a aumentar a um ritmo de 10 mil hectares por ano. A forma de cálculo não deixa de ser sui generis: dos cerca de 100 mil hectares que arde por ano, metade é floresta; a florestação atinge uma média de 20 mil hectares e depois a Direcção-Geral das Florestas considera que se verifica uma regeneração natural após os incêndios da ordem dos 40 mil hectares.

Ora, além de não contabilizarem as áreas que são sujeitas a corte raso para a indústria madeireira – que deverá rondar os 25 mil hectares por ano –, será muito forçado considerar que logo a seguir a um incêndio essa área regenere imediatamente para um tipo de vegetação que possa ser considerada floresta. E sobretudo quando os fogos são reincidentes. “Apenas existirá regeneração natural se, por exemplo, um incêndio num pinhal não for destrutivo a ponto de inviabilizar a germinação das sementes, que aliás apenas existirão se estivermos perante um povoamento adulto”, salienta Cardoso Pereira. O director-geral das Florestas, Sousa Macedo, defende que “esses valores de regeneração têm em consideração que essas áreas continuam a ter o mesmo tipo de vegetação”, embora admita que “possa haver uma redução dos volumes de biomassa”.

Independentemente dessa forma de contabilidade, certo é que a floresta de pinheiro se encontra num estado pré-calamitoso. A sua área total tem vindo a registar um decréscimo acentuado nas últimas duas décadas e a dimensão dos incêndios é, directa e indirectamente, uma das causas principais. O último inventário florestal, feito com base num levantamento aerofotográfico de 1995, aponta para uma redução de 276 mil hectares desde 1985, ou seja, uma queda de 22%. Na altura desse inventário, estimou-se também que apenas 8% da área de pinhal tinha menos de oito anos, o que implica que a tendência de decréscimo vai agravar-se no futuro. De forma indirecta, a o empobrecimento dos povoamentos de pinheiro em Portugal também se confirma pela evolução das produções de madeira. De acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística, a redução da produção total de madeira de pinho e outras resinosas atingiu os 43% entre o ano 2000 e 1993.

Se se pensa que houve uma “transferência” para os eucaliptos, os números não reflectem isso. Aparentemente, o surto de eucaliptização do país acabou. As celuloses não só começaram a recorrer mais às importações desta madeira em bruto como passaram a apostar apenas em área que lhes pudessem garantir produções relevantes e evitando simultaneamente as áreas de maior incidência de fogos. Por isso mesmo, as produções de madeira de eucalipto nacional sofreram uma ligeira redução de 4% entre 1993 e 2000.

Todos estes factores estão a reflectir-se na economia silvícola do país. Com a agricultura a dar as últimas, esperar-se-ia um reforço da componente económica da floresta. Mas não foi isso que aconteceu nos anos 90; muito pelo contrário. No final do ano passado, o INE apresentou as contas económicas da silvicultura nacional entre 1990 e 2001. As notícias não são nada floridas: durante aquele período, a produção económica do sector florestal teve uma redução, a preços constantes de 1995, de 1,1%. E o panorama só não foi pior porque as produções de cortiça – ou melhor, o seu preço – aumentaram consideravelmente nos últimos anos. Sem a fileira da cortiça, a queda foi de 2,6%. Com esta evolução, acaba por não surpreender que o peso da floresta na economia nacional se esteja a esfumar. Enquanto em 1990 este sector era responsável por 1,2% do valor acrescentado bruto nacional, há dois anos apenas representava 0,7%. Mas mesmo assim estamos a falar de qualquer coisa como 545 milhões de euros.

É preciso conhecer a realidade na floresta no terreno para compreender as causas dos incêndios e da baixa produtividade dos povoamentos, sobretudo de pinheiro. Dos 3,3 milhões de hectares de território nacional que a Direcção-Geral das Florestas diz ter actividade silvícola, 85% é propriedade privada. E o português sempre gostou de ser proprietário mais numa perspectiva de coleccionador do que de empresário. Na maioria dos casos, sobretudo a norte do Tejo, a floresta serviu para quase tudo menos para criar riqueza: como simples caprichos de posse de terra, como um complemento de outra actividade económica, como forma de transmissão de bens para os familiares ou mesmo para pagar o casamento dos filhos.

Com o tempo e com as heranças, a floresta foi-se partindo e repartindo até chegar-se ao ponto de mais de 90% das parcelas florestais se limitarem a uma área inferior a três hectares. Em muitos concelhos do país, facilmente se encontram proprietários com várias dezenas de terrenos florestais, espalhados um pouco por todo o lado, que totalizam meia dúzia de hectares. Na região Centro do país alguém que tenha mais de 10 hectares de floresta contínua é uma “ave” rara. “Na generalidade dos casos, as pessoas nem sabem bem onde se localizam muitas das suas pequenas leiras”, diz Armando Carvalho, engenheiro florestal que coordena a Operação Integrada das regiões do Pinhal Interior Norte e Sul, um organismo ligado à Comissão de Coordenação da Região Centro. E “suas pequenas leiras” é uma força de expressão. “Essas parcelas chegam, em grande parte, de heranças e quase sempre nem sequer estão registadas em nome do proprietário, mas sim no dos pais ou avós”, salienta aquele responsável.

Se porventura se fizesse a listagem dos proprietários que constam no registo predial chegar-se-ia à tétrica conclusão que a floresta portuguesa pertence maioritariamente aos mortos. Neste aspecto, o Estado é um dos principais responsáveis por esta desactualização que, além do mais, o prejudica em termos fiscais. Com a recente alteração das taxas e emolumentos, regularizar os registos é um processo caro, burocrático e injusto. Custa tanto registar um prédio rústico de meio hectare como um latifúndio alentejano ou um lote urbanizável. Se um proprietário quiser – ou for obrigado, para efeitos de candidatura a fundos comunitários – regularizar os registos de um terreno florestal herdado vai ter de pagar 146 euros de emolumentos, mais 232 euros de documentação de partilhas, mais 60 euros de outras taxas notariais, mais 125 euros de inscrição matricial no registo predial e, para ver um papelinho que confirme ser o fiel dono do seu pedaço de Portugal, desembolsa mais 25 euros para uma certidão de teor.

Se custa tanto descrever – e, se calhar, também ler – todas estas taxas, imagine-se então a burocracia e o preço nos casos em que estejamos perante várias parcelas e, pior ainda, se porventura o registo inicial estiver em nome dos avós. Nesses casos, até Kafka ficaria atordoado: se ambos os familiares já não estiverem vivos, ter-se-á primeiro que fazer a passagem do registo do avó falecido para o pai morto e só depois para o filho vivo. E no meio disto, os preços duplicam. Contas feitas e para se dar um exemplo concreto, um típico proprietário de 25 parcelas florestais terá de pagar, pelo menos, cinco mil euros para por tudo em ordem. Claro está que a esmagadora maioria deixa tudo ao abandono: papelada e floresta. E assim o Estado acaba também por perder, tanto mais que quase todas os antigos registos prediais pecam por assumirem uma área inferior àquela que, na realidade, existe no terreno. “Já se verificou a existência de subavaliações de área da ordem das 10 vezes”, afirma Armando Carvalho.

Este sistema disseminado de minifúndio torpedeado por uma teia burocrática é um ingrediente explosivo para o abandono e o abstencionismo da floresta, agravado pela desertificação humana e agro-pastoril do mundo rural e pelo fraco associativismo. Daí até uma floresta abandonada vai um pequeno passo, onde os matos crescem e as árvores se encavalitam e contorcem umas entre as outras até acabarem em cotos carbonizados pelo previsível incêndio. Neste emaranhado, conseguir um agrupamento de proprietários para apresentar candidaturas para apoios comunitários é um “bicho-de-sete-cabeças”. “À natural desconfiança e desinteresse, juntam-se depois os pequenos conflitos entre vizinhos e as dificuldades inerentes em conseguir contactar e convencer grande parte dos proprietários que nem vivem na zona”, diz Rita Rodrigues, técnica da Aproflora, uma recente associação florestal do concelho da Sertã.

Depois há também que contar com os regulamentos surrealistas. Após o desperdício neste sector que grassou os primeiros 10 anos de integração europeia, os ferrolhos fecharam-se até níveis absurdos. Não só os montantes de apoio se reduziram substancialmente, como as normas se tornaram absurdas. Por exemplo, os proprietários que se agrupam para formar uma área susceptível de receber apoios financeiros para florestação, caso queiram, passado alguns anos, recorrer a novos subsídios, é-lhes exigido uma coincidência nas assinaturas feitas no projecto inicial. Ou seja, se algum dos proprietários falece ou vende a sua parcela, o apoio para o projecto global fica inviabilizado.

Por isso, não surpreende que, na segunda metade da década de 90, Portugal nem sequer conseguiu aproveitar os fundos comunitários no seu pleno, tendo mesmo sido solicitado pela Comissão Europeia a devolução de cerca de 80 milhões de euros do programa comunitário Ruris por falta de candidaturas privadas para a floresta. Aliás, em 2001 foram aprovados a nível nacional apenas 46 projectos de intervenção florestal para beneficiar uns meros 555 hectares. No ano passado, as coisas melhoraram um pouco: foram aprovados quase sete centenas de projectos destinados para 11 mil hectares, embora mais de metade em sobreiros e azinheiras.

O director-geral das Florestas diz que este “modus operandi” está em alteração. “O novo Programa de Acção Florestal vai alterar essas situações e já foram reforçados os apoios para captar mais candidaturas”, diz Sousa Macedo. “Ainda existe um longo percurso a fazer, mas já se conseguiram dar passos fundamentais que demonstram que mesmo em minifúndio conseguem-se fazer projectos interessantes e viáveis”, afirma Armando Carvalho, exemplificando com o incremento do associativismo na região centro do país. “Nos últimos três anos passou-se de uma para 15 associações florestais nas regiões do Pinhal Interior Norte e Sul, que mais do que apresentar projectos, funcionam como entidades prestadoras de serviços, ocupando um ‘nicho’ de mercado que até então era inexistente”, salienta.

Além disso, estas associações executam uma das tarefas mais vitais na gestão florestal: a limpeza dos matos e as operações de desbaste para melhorar a produtividade, bem como a vigilância contra incêndios e o acompanhamento técnico das explorações. “Até à nossa criação, era difícil encontrar quem fizesse este tipo de serviços e organizasse os processos de candidatura para os projectos”, afirma Tânia Antunes, engenheira florestal da Aproflora.

De qualquer modo, estes aspectos positivos não conseguem mascarar uma quase completa ausência de estratégia do Estado para o sector florestal. Os planos de ordenamento florestal são prometidos e não concluídos ou postos em execução, a Direcção-Geral das Florestas é um parente pobre da Administração Pública – completamente secundarizada a nível regional pelas direcções de agricultura – e deixa-se assim à sorte e aos privados a execução dos projectos e a gestão da floresta.

Não deixa de ser sintomático do fraco carinho que a floresta portuguesa – que ocupa um terço do território português – tem tido dentro dos sucessivos Governos saber que apenas nos anos 70 houve, numa das curtas legislaturas, uma Secretaria de Estado das Florestas. Desde há muitos anos que a floresta é gerida por dois Ministérios: o da Agricultura, quando não arde; o da Administração Interna, quando está a arder. Quase sempre de costas voltadas. Ora, isto não pode dar bons resultados. Aliás, acontece o mesmo absurdo no caso dos peixes de água doce: quando estão vivos são geridos pelo Ministério da Agricultura, via Direcção-Geral das Florestas; quando estão mortos são uma tarefa para o Ministério do Ambiente. Diga-se também que o Estado como proprietário também não fica bem na fotografia. Nas últimas décadas a gestão das florestas públicas, sobretudo dos baldios, tem-se vindo a degradar, tanto mais que as receitas obtidas pela exploração da madeira não é reinvestido.

No meio do desastre que anualmente assola a floresta nacional, há um aspecto insondável: num país tão célere e insistente a divulgar os estragos dos incêndios, a abnegação do combate pelos bombeiros e o pânico das populações lambidas pelas chamas, acabe por não carpir assim tanto as mágoas sobre as perdas económicas e ambientais que provoca. Basta reparar que após um incêndio, mesmo que seja de grandes dimensões, raramente se vislumbram associações de proprietários a lamentar o sucedido e a reclamar um qualquer estado de calamidade.

Afinal, na maioria dos casos, o fluxo informativo apenas desfia o rol de material de combate, o número de bombeiros, a existência de meios aéreos de combate – e o esperado e nem sempre justificável rol de críticas, caso não estejam a actuar –, os reacendimentos, a possível causa e, last but not the least, as casas em perigo. No meio disto, fica a faltar ouvir as vítimas. Como a floresta não tem voz, obviamente que as vítimas que se deveriam lamentar são os proprietários.

A comparação com aquilo que se passa com a agricultura é incontornável: um granizo mais forte ou uma seca mais prolongada quase sempre implicam a atribuição de subsídios face à pressão dos agricultores. Ao invés, num incêndio, a voragem das labaredas aparentemente aniquila qualquer pedido de ajuda. Porque acontecerá isto, sobretudo quando na agricultura até existem seguros e na floresta são uma raridade? Será pelos poucos prejuízos que os fogos florestais provocam? Obviamente que não. Além dos danos ambientais e dos custos directos do combate aos incêndios florestais – que já ultrapassam uma média anual de 25 milhões de euros –, a queima de madeira implica uma perda económica nada negligenciável.

Segundo os cálculos da Direcção-Geral das Florestas, os prejuízos directos dos incêndios foram, no ano passado, de cerca de 60 milhões de euros e já chegaram a atingir os 450 milhões, o valor estimado no ano 2000. E estes valores pecam por defeito, uma vez que se referem apenas aos maiores incêndios que, regra geral, não ultrapassam os 20 por cento da área ardida anualmente. Se se extrapolar as estimativas das autoridades florestais, por cada hectare ardido o país fica mais pobre em cerca de três mil euros.

Contudo, a atitude geral no rescaldo de um incêndio é um típico encolher de ombros. A culpa sempre morrerá solteira e ninguém está para então fazer contabilidades pessoais pelos prejuízos. Exemplo disso aconteceu na freguesia de Álvares. Numa noite de Agosto de 2000, um foguete da festa de São Mateus – por ironia, padroeiro dos contabilistas – foi o rastilho de um incêndio que devastou 4300 hectares em poucos dias. Nem o governador civil de Coimbra que autorizou, nem a polícia que não fiscalizou, nem os organizadores da festa popular que lançaram os foguetes foram chamados à pedra.

O saldo final dos prejuízos calculados pela Direcção-Geral das Florestas foi de 10 milhões de euros; o seguro obrigatório da festa cobria danos de uns míseros 25 mil euros. “Quase toda a gente da freguesia que tinha terrenos foi afectada; foi um corrupio para salvar o que se pudesse e sobretudo as casas”, diz Florêncio Alves, pai do proprietário de um café desta aldeia de Góis. Mas, pergunta-se, e depois disso, o que fizeram as pessoas? “O que poderiam fazer? Nada! Venderam o que ainda restou aos madeireiros, quem tinha dinheiro voltou a plantar e os outros deixaram estar como está”, responde. E o que aí está, volvidos três anos, é ainda uma extensa área deserta, pontuada por alguns pinheiros ainda calcinados que os madeireiros – que sempre surgem nestas alturas com uma voragem faminta – ou uns desinteressantes matos que a formosura da sinuosa e límpida ribeira de Sinhel não consegue embelezar.

O uso discriminado de foguetes é, aliás, uma emergente causa de incêndios que parece ninguém ter coragem para estancar. Segundo a Direcção-Geral das Florestas, dos 136 grandes incêndios inspeccionados no ano 2000, 25 estiveram associado a festas com foguetes, que curiosamente são autorizados pelos respectivos Governos Civis temerosos de cumprirem a lei que proíbe lançamentos numa faixa de segurança dos 500 metros adjacente às florestas. Preferem deixar que se lancem foguetes para o Céu em honra dos Santos, mesmo que na volta as florestas se transformem num Inferno.

De qualquer modo, os foguetes estão longe de ser a principal causa, embora sejam um reflexo da negligência com que as florestas são tratadas em Portugal. Negligência que se alastra ao incumprimento do perímetro de segurança das habitações. A lei obriga que, haja uma faixa de 50 metros sem matos e grande densidade de árvores de modo a evitar que um eventual fogo chegue às residências. Ninguém se importa com isso até que um incêndio descontrolado faz com que se ouçam os gritos de desespero. E para salvar “in extremis” essas casas, os bombeiros acabam por não conseguir salvar a floresta.

O factor humano, directa ou indirectamente, é assim a causa quase única dos grandes incêndios. As verdadeiras causas acidentais – como trovoadas, curto-circuitos ou combustão espontânea – são pouco significativos, rondando não mais de 10 por cento. As queimadas feitas por agricultores para a renovação de pastagens ou para a limpeza de áreas agrícolas nas imediações de florestas – em tempos, uma prática feita com alguma mestria – são uma das principais causas identificadas dos incêndios, principalmente nas regiões de Entre-Douro e Minho, Trás-os-Montes e Beiras Litoral e Interior.

Contudo, o incendiarismo está a assumir contornos preocupantes. De acordo com os dados oficiais, no ano passado, de entre os 164 maiores incêndios, 49 foram originados por fogo posto. Ou seja, 30 por cento do total, quando no triénio 1994/96 tinha sido a causa de apenas sete por cento dos incêndios investigados. Este peso ainda deverá ser maior, uma vez que, por exemplo, em 55 dos grandes incêndios do ano passado não se chegou a apurar a causa ou simplesmente não foram investigados. Neste aspecto, o poder judicial também tem culpas no cartório por ter mão pouco pesada: entre 1997 e 2002, dos 185 arguidos julgados por crimes de incêndios florestais só quatro cumpriram penas de prisão. As estatísticas do Ministério da Justiça indicam que metade dos réus acusados de fogo posto foram absolvidos ou considerados inimputáveis e aos restantes foram aplicadas multas ou penas suspensas.

A última moda na floresta são, agora, os meios aéreos. Já fazem parte do folclore. À falta da ajuda de São Pedro, não há quem não almeje ver a salvação alada de um helicóptero ou avião a lançar água para o meio de um incêndio. Desde o ano negro de 1998, os custos do combate aos incêndios têm sido da ordem dos 25 milhões de euros por ano, sobretudo por via do incremento das despesas nos meios aéreos. E como já se referiu, os resultados são quase nulos, uma vez que a área ardida tem aumentado. A pressão, por vezes mediática, para o uso de helicópteros e aviões fez com que as despesas nesta componente tenham quase triplicado desde o início da década de 90. Não deixa, aliás, de ser curioso que no ano em que mais se gastou em meios aéreos – cerca de 18,5 milhões de euros – foi em 1999, em que teve um número de fogos e uma área ardida relativamente baixas. No ano anterior – que foi o mais infernal que se conhece – gastaram-se “apenas” 12 milhões de euros.

Saber se os meios aéreos foram determinantes ou não é pura especulação porque nunca se fez uma análise custo-benefício. “Os meios aéreos têm de começar a ser utilizados com algum critério”, advoga Pedro Lopes, vice-presidente do Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil. “Em geral, são mais eficazes no início dos incêndios e temos que começar a evitar cair na tentação de responder a todas as solicitações e cercear os custos até um limite aceitável”, acrescenta.

No meio de tantos milhões, a prevenção dos fogos acaba por ser o parente pobre. Se é fácil justificar gastos elevados no combate quando arde muito, mais difícil é encontrar justificativos para se gastar muito em prevenção, sobretudo quando arde pouco. E também quando nem sequer se faz uma análise custo-benefício das acção dos sapadores florestais e das brigadas de primeira intervenção. Agora, com a fusão da tutela dos bombeiros com a da protecção civil, a parte da prevenção perdeu ainda mais autonomia financeira e no início do mês passado nem sequer se sabia ainda quanto dinheiro estará este ano cabimentado para esta componente. Pedro Lopes promete, contudo, um reforço nas equipas de primeira intervenção. “Vamos ter cerca de 3500 bombeiros, que serão pagos, em permanência para as acções de primeira intervenção”, assegura. Contudo, parece evidente que esta não é uma solução sustentável. “Para se arranjar esses bombeiros é uma carga de trabalhos; poucos querem estar sujeitos a um emprego temporário, mal pago e com atraso”, diz Raul Dias, responsável do quartel de Álvares dos bombeiros de Góis.

Uma outra questão não menos problemática, mas que é quase tabu, é a eficácia dos meios de combate terrestre. À boleia do voluntariado, a eficácia do combate pelos bombeiros nunca é alvo de qualquer avaliação, apesar das evidentes falhas de formação e alguns erros de coordenação das equipas que combatem os incêndios. Aliás, nunca houve qualquer comandante de bombeiros que tenha sido demitido por ineficácia no combate. Apesar de nos últimos anos a Escola Nacional de Bombeiros (ENB) ter vindo a fazer um esforço suplementar na formação, até agora menos de cinco por cento dos cerca de 40 mil soldados da paz têm formação específica no combate a incêndios florestais. E a esmagadora maioria dos comandantes das corporações também só tem a experiência adquirida. Pedro Lopes desdramatiza estas lacunas. “A ENB é sobretudo uma escola de formação de formadores; estes têm depois a incumbência de irem ensinar nas suas corporações”, salienta.

De qualquer modo, o voluntariado parece ter os dias contados. Ou, pelo menos, necessita de uns balões de oxigénio. Pedro Lopes considera serem essenciais a introdução de algumas melhorias nos benefícios no estatuto de bombeiro, mas considera que o modelo assente no voluntariado é o mais aceitável. “Não existem meios financeiros para profissionalizar os bombeiros”, assegura, “nem isso traria vantagens no combate aos incêndios”. Opinião oposta tem Fernando Curto, presidente da Associação Nacional dos Bombeiros Profissionais que congrega os sapadores e os bombeiros municipais das principais cidades do país. “O voluntariado tem sido sinónimo de amadorismo, de desresponsabilização e de descoordenação”.

Aquele responsável exemplifica com os casos em que num determinado incêndio são enviadas corporações sem qualquer conhecimento do terreno e sem uma organização de combate por turnos. “Ver bombeiros a combater uma noite inteira, depois a irem para o trabalho, e regressarem para apagar mais um incêndio, não só é desumano, como ineficaz”, afirma aquele responsável. Além disto, existe o problema de conseguir um número suficiente de bombeiros na primeira meia hora após a detecção do incêndio, considerado o período fulcral para evitar que um fogacho se transforme num grande incêndio. Em muitos casos, os patrões não disponibilizam os seus empregados que sejam bombeiros. Por isso, na altura da sirene tocar, muitos comandantes fazem contas à vida: se no horário laboral conseguirem um terço do seu efectivo podem dar-se por afortunados. “A profissionalização poderia ser feita de molde a que os bombeiros também executassem tarefas na floresta durante o Outono e Inverno; nunca estariam parados, além de que se acabaria com as ‘guerrilhas’ entre corporações que não respondem a hierarquias”, sustenta Fernando Curto.

Perante isto, saber quem tem razão será difícil, mas certo é que no actual sistema acumulam-se situações caricatas e, por vezes, perigosas. Raul Dias recorda que no incêndio de Álvares de há três anos chegaram corporações de bombeiros da área de Lisboa em plena noite, depois de cinco horas de uma desconfortável viagem, cansados, esfomeados e com auto-tanques sem gasóleo. “Alguns ficaram parados à beira da estrada, esperando que se arranjasse combustível”, diz. Por outro lado, os bombeiros da terra foram apagar os incêndios para longe da área que melhor conhecem. E só por uma unha negra se evitou que se avançasse para uma estratégia de ataque a uma frente de incêndio que poderia ter sido fatal: uma corporação “estrangeira” decidiu fazer um contra-fogo, desconhecendo que, dessa forma, envolveria três vivendas habitadas nas chamas. O vice-presidente do SNBPC admite que possam existir falhas, mas desculpabiliza os bombeiros. “O grande problema está sobretudo no elevado número de incêndios; isso é que tem de se resolver com urgência; se assim for haverá capacidade organizativa para fazer um combate eficaz com rescaldos de evitem reacendimentos”, salienta Pedro Lopes.

Enquanto todos estes problemas não se resolvem, o tempo passa. E, no futuro, o país ficará ainda mais ardente. Um estudo de investigadores portugueses estima que as alterações climáticas – que em Portugal resultarão num aumento da temperatura em três graus e uma diminuição da precipitação anual da ordem dos 100 milímetros – poderão vir a triplicar o risco de incêndios entre Maio e Outubro. E, além disso, o número de dias no ano em que esse risco é muito elevado aumentará entre três e cinco vezes.

Nesse cenário, o fogo – já agora tão frequente e devastador – será, ainda mais, uma imagem de marca do país conhecido pela famosa trilogia em F: fado, Fátima e futebol. E, nessa situação, a nova tetralogia só não se transformará em pentalogia porque as regras do decoro e da boa educação evitarão que se acrescente mais uma expressão em F, neste caso vernácula. Mas que o país ficará como uma das palavras do título do livro sobre amor do Miguel Esteves Cardoso, ai isso fica.